100 anos de Cortázar
Último Round – 1969
Ele não sabe que nós gostamos de errar por suas pinturas, que há muito nos aventuramos em seus desenhos e gravuras, examinando cada curva e cada labirinto com um cuidado sigiloso, com um interminável apalpar de antenas. Talvez seja a hora de explicar por que renunciamos durante longas horas, às vezes toda uma noite, ao nosso destino de formigas famintas, às intermináveis filas indo e vindo com pedacinhos de grama, fragmentos de pão, insetos mortos, por que há muito esperamos ansiosas que a sombra caia sobre museus, galerias e ateliês (o seu em Bougival, onde temos como a capital do nosso reino) para deixar as tarefas tediosas e ascender aos recintos onde nos esperam os jogos, entrar nos lisos palácios retangulares que se abrem à festança.
Há anos, em um desses paÃses que os homens montam e nomeiam para o nosso internacional regozijo, uma de nós erroneamente escalou um sapato; o sapato se pôs a andar e entrou numa casa: e aà descobrimos o nosso tesouro, as paredes cobertas de cidades maravilhosas, as paisagens privilegiadas, a vegetação e as criaturas que nunca se repetem. Em nossos anais mais secretos consta o relato do primeiro encontro: a exploradora levou uma noite inteira para encontrar a saÃda de um pequeno quadro em que os caminhos se emaranhavam e se contradiziam como um ato de amor interminável, uma melodia recorrente dobrando e desdobrando a fumaça de um cigarro que passando pelos dedos de uma mão para abrir-se em uma cabeleira cheia de trens que entrava numa estação de uma boca aberta contra um horizonte de lesmas e cascas de laranja. Seu relato nos comoveu, nos mudou, fez de nós um povo veemente de liberdade. Decidimos reduzir para sempre o nosso horário de trabalho (tivemos que matar alguns chefes para isso) e dar a conhecer à nossas irmãs onde estivessem – que é por toda parte – as chaves para acessar o nosso jovem paraÃso. Emissárias providas de pequenas reproduções e desenhos empreenderam longas viagens para levar a boa nova; exploradoras obstinadas localizaram pouco a pouco museus e casarões que guardam os territórios de tela e papel que amamos tanto. Agora sabemos que os homens têm catálogos desses territórios, mas o nosso é um atlas de páginas espalhadas que ao mesmo tempo descrevem e são o nosso mundo elegido; e disto falamos aqui, de atlas vertiginosos e de bússolas de tinta, do encontro  com a cor do cruzamento de linhas, encontros terrÃveis e alegrÃssimos, de jogos infinitos.
Se no começo, muito acostumadas ao nosso triste viver em duas dimensões, ficávamos na superfÃcie e nos bastava a delicia de nos perdermos e nos encontrarmos e nos reconhecermos no fim das formas e dos caminhos, logo aprendemos a mergulhar nas aparências, nos metermos por baixo de um verde para descobrir um azul, um coroinha, uma cruz de pimenta ou um carnaval de aldeia; as áreas sombrias, por exemplo, os lagos chineses que evitávamos em princÃpio porque nos enchia de medrosas dúvidas, se tornaram espeleologias onde todo o medo de cair cedia ao prazer de passar de uma penumbra a outra, de entrar na luxuosa guerra do negro contra o branco, e nas que chegávamos ao mais fundo descobrÃamos o segredo: só por debaixo, por dentro, se decifram as superfÃcies. Compreendemos que a mão que havia traçado essas figuras e estes rumos com os quais tÃnhamos aliança, era também uma mão que saia de dentro para o ar enganoso do papel; seu tempo real se situava do outro lado do espaço de fora que prismava a luz dos óleos ou enchia de lágrimas de sépia as gravuras. Entrar em nossas cidadelas noturnas deixou de ser uma visita em grupo que um guia comenta e estraga; agora eram nossas, agora vivÃamos nelas, agora nos amávamos em seus aposentos e bebÃamos hidromel da lua em terraços habitados por uma multidão tão ansiosa e espasmódica como nós, estatuetas e monstros e animais enredados na mesma ocupação de território e que nos aceitavam sem suspeita como se fôramos formigas pintadas, o desenho movente da tinta em  liberdade. Ele não sabe, a noite dorme ou a sai com os amigos ou fuma lendo e ouvindo música, essas atividades tolas que não nos dizem respeito. Quando de manhã chega de volta ao ateliê, quando os seguranças começaram a ronda nos museus, quando os primeiros aficionados entram nas galerias de pintura, nós já não estamos mais lá, o ciclo do sol nos devolveu a nossos formigueiros. Mas furtivamente gostarÃamos de dizer-lhes que retornaremos com as sombras, escalaremos heras e ​​janelas e incontáveis paredes para alcançar as muralhas de carvalho ou de pinho por de trás das quais nos espera, tenso em seu semblante, o nosso reino de cada noite. Cremos que, se alguma vez, com a lanterna na mão, a insônia o traz para algumas de suas pinturas ou desenhos, veremos sem temor seu pijama que imaginamos listrado de preto e branco, e que ele se detenha interrogante, ironicamente divertido, observando-nos longamente. Talvez demore em nos descobrir, porque as linhas e as cores que ele colocou lá se movimentam e tremem e vão e vem como nós, e nesse tráfego que explica o nosso amor e nossa confiança talvez pudesse, por acaso, passar-nos despercebidas; mas sabemos que nada escapa de seus olhos, e que vai rir, e que nos tratará de aturdidas porque alguma corrida impensada está alterando o ritmo do desenho ou introduz o escândalo numa constelação de signos. O que poderÃamos dizer em nossa defesa? O que podem as formigas contra um homem de pijama?