2015 – 100 anos de Cortázar
Ultimo Round – 1969
Os ritos de passagem da raça parecem oscilar monotonamente da história à vidência, das prestigiosas portas do passado à s incertas do futuro. Os personagens de um romance de James Ballard, favorecidos por um mundo em revolta entropia tendem a organizar os seus sonhos na procura da verdade primordial, e mergulham oniricamente até as origens, refazendo o itinerário da espécie até redescobrir em suas visões as florestas de samambaias, o primeiro sol carregado de pólen vital, o inútil ponto de partida; os historiadores cheios de si mesmos, se lançam bêbados de passado em busca do sol do meio-dia, e vão caindo num despertar de catástrofe, onde os espera uma morte irrisória. De alguma forma, esta aberração parece um sÃmbolo do homem moderno, vidente da história ou historiador da vidência, obstinado em crer que as portas (as bicudas) se abrem à suas costas ou no horizonte o aguardam (as de marfim). Cheguei a convencer-me de que estas portas são pintadas em uma parede de fumaça e papel. Falo agora de outra passagem que se deixa adivinhar through a glass, darkly. Com o mais convencional dos sorrisos, Barba Azul ordena: “Jamais abra esta porta”, e a pobre moça que alguns chamam Anima não cumprirá o destino que a heroÃna da lenda propunha com um obscuro signo de cumplicidade. Não só não abrirá a porta, como seus mecanismos de defesa tornaram-se tão perfeitos que Anima não verá a porta, mas a terá ao alcance do desejo e seguirá buscando com um livro numa mão e uma bola de cristal na outra. Não queres a verdadeira chave, Anima? Em Judas pode-se ver a máquina necessária para a redenção teológica coagular-se no seu espantoso preço de madeiras cruzadas e sangue; Barba Azul, esta outra versão do Judas sugere que a desobediência pode operar a redenção aqui e agora, neste mundo sem deuses. Sob a luz de figuras arquetÃpicas qualquer proibição é um claro conselho: abre a porta, abre agora. A porta está a seu alcance, não é história ou profecia. Mas você tem que chegar até ela, e para vê-la, proponho sonhar posto que sonhar é um presente deslocado e realocado por uma operação exclusivamente humana, uma saturação de presente, um troço de âmbar cinza flutuando no futuro, ao mesmo tempo isolando-se dele na medida em que o sonhador está em seu presente, que incita fora de todo o tempo e espaço kantianos as desconcertadas potências de seu ser. Neste presente onde Anima ainda não sabe como usar suas forças liberadas, nessa pura vivência onde o sonhador e seu sonho não estão distanciados por categorias de entendimento, onde cada homem é ao mesmo tempo: o seu sonho, estar sonhando e ser o que sonha, a porta espera ao alcance da mão.
Não tem nada mais que abri-la (“Jamais abra esta porta”, ordena Barba Azul) e o caminho é este: temos de aprender a despertar dentro do sonho, impor a vontade à realidade onÃrica em que até agora só se é passivamente: autor, ator e espectador. Quem chegar a despertar a liberdade no seu sonho terá franqueado a porta e terá ascendido a um plano que será por fim um novum organum. Vertiginosas sequelas se abrem aqui ao indivÃduo e a raça: a de voltar da vigÃlia onÃrica à vigÃlia quotidiana com uma única flor entre os dedos estende a ponte de reconciliação entre a noite e o dia, e quebra a torpe máquina binária que separava Hipnos de Eros. Ou, mais lindamente, aprender a adormecer no coração do primeiro sonho para entrar em um segundo, e não só isso: despertar no segundo sonho e abrir outra porta, e voltar a sonhar e despertar no terceiro sonho, e sonhar novamente e despertar, como fazem as bonecas russas. “Jamais abra esta porta”, disse Barba Azul. O que farás, animula vagula blandula?
AnÃmula vágula blândula – último poema do Imperador Adriano, sobre a alma e a morte.
Imperador Adriano -76 DC
Tradução: Ivan Pérsio de Arruda Campos/Haroldo de Campos (filho em nome do pai)
Animula vagula blandula,
hospes comesque corporis,
qu[o] nunc abibis? in loca
pallidula rigida nu[bi]la –
nec ut soles dabis iocos.
AnÃmula vágula blândula
do corpo sempre hóspede e amiga
prá onde vais agora? lugares
tão pálidos gélidos núbilos…
…e não mais nos dás logojogos.
Nota: (anÃmula = pequena alma; vágula,de vaga, com o sentido de quem gosta de viajar, blândula, de branda = afável e núdula, de nua) e na escolha de núbilos (=obscuros, nublados)
http://www.revistas.usp.br/clt/article/viewFile/49418/53491
 Versão mais conhecida:
Animula vagula blandula,
hospes comesque corporis,
quae nunc abibis in loca
pallidula rigida nudula?
nec ut soles dabis iocos.
AnÃmula vágula blândula
do corpo sempre hóspede e amiga
a que lugares vais agora,
já pálida gélida núdula?
…e não mais nos dás logojogos.