2015 – 100 anos de Cortázar
Ultimo Round – 1969
O estado que definimos como distração poderia ser de alguma maneira uma forma diferente da atenção, sua manifestação simétrica mais profunda que se situa num outro plano da psique; atenção dirigida desde ou através, inclusive até, este nÃvel mais profundo.
Não é incomum que uma pessoa dada a esses tipos de distrações (o que é chamado ficar comendo mosca) na presença sucessiva de vários fenômenos heterogêneos crê instantaneamente na apreensão de uma unicidade deslumbradora.
Na minha condição habitual de comedor de mosca, isso pode acontecer por uma série de eventos iniciados pelo som de uma porta se fechando, que precede ou é sobreposto ao sorriso da minha mulher, a memória de uma ruela em Antibes e a visão de uma rosa em um vaso, desencadeie uma imagem diferente de todos os elementos parciais,
completamente indiferentes aos possÃveis nexos associativos ou causais, e que propõem
– nesse momento fulgural, irrepetÃvel e já passado, e obscuro –
a antevisão de uma outra realidade que para mim já foi ruÃdo de porta, sorriso e rosa, se constitui em algo totalmente diferente na sua essência e significado.
Vale notar que a imagem poética é uma representação dos elementos da realidade usual articulada de modo a que o seu sistema de relações favorece essa antevisão de uma outra realidade. A diferença é que o poeta é o manejador involuntário ou voluntário, mas sempre intencional desses elementos (intuir a nova articulação, escrever a imagem), enquanto que na vivência de comedor de mosca, a antevisão ocorre de forma passiva e fatal: a porta bate, alguém sorri, e o sujeito padece de um estranhamento instantâneo.
Pessoalmente me inclino para as duas formas, a mais ou menos intencional e a totalmente passiva, e é esta última que me arranca de mim mesmo com maior e força a me projeta para uma perspectiva da realidade em que, infelizmente, eu não sou capaz de fincar pé e permanecer.
Notar no exemplo, que os elementos da série: – porta batendo – sorriso – Antibes – rosa – deixam de ser o que conotam estes respectivos termos, sem que se possa saber o que passam a ser.
A descolagem ocorre um pouco como o fenômeno de déjà vu: iniciada a série, digamos: porta – sorriso – o que se segue (Antibes – rosa -) passa a ser parte da imagem total e deixam de valer em tanto que “Antibes” e “rosaâ€, uma vez que os elementos desencadeantes (porta – sorriso) se integram na imagem constituÃda. É como se estar diante de uma cristalização fulgurante, e se a percebermos desenvolver-se temporalmente:
1) porta, 2) sorriso, algo nos assegura irrefutavelmente que é só uma questão de condicionamento psicológico ou mediação no contÃnuo do espaço-tempo.
Na realidade tudo acontece (é) a cada vez: a “portaâ€, o “sorrisoâ€, e o resto dos elementos que formam a imagem se propõem como facetas ou elos, como um relâmpago articulante que coagula o cristal em um suceder sem estar na duração. ImpossÃvel de reter, posto que estamos dentro.
Fica uma ansiedade, um tremor, uma vaga nostalgia. Algo estava lá, quiçá tão perto.
E não resta mais do que uma rosa em seu vaso, neste lado, onde
a rose is a rose is a rose
e nada mais.
Cortázar – por Manja Offerhaus
a rose is a rose is a rose
(Gertrude Stein)
E o que é o ar.
O ar é lá.
O ar é lá no que há no ar.
Por gentileza observem que tudo é de uma só sÃlaba e pois útil. Não produz sentimento, contém uma promessa, é um prazer, não necessita estÃmulo, é só.
O ar é só
Sim o ar é só
Só de que
O ar é só de ar.
Sim
O ar
É só
De ar.
(Gertrude Stein por Augusto de Campos)
Gertrude Stein – por Man Ray (1927)
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